“A vacina para a Covid-19 ainda é uma incógnita”
O cientista Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular, natural de Santarém, diz que o conhecimento, depois de gerado, é irreversível e que não há uma ciência boa e uma ciência má, apesar das aplicações desastrosas que dela podem ser feitas. Assume que estes tempos de pandemia são particularmente desafiantes para a comunidade científica mas defende que a investigação sobre outras áreas não deve ser descurada. Uma conversa a propósito do Dia Mundial da Ciência e do Dia Nacional da Cultura Científica que se assinalaram recentemente.
Os países continuam a investir nas forças armadas mas é o sector da saúde que está em guerra. O combate à Covid-19 tornou-se o principal desafio da ciência nos dias que correm?
Não. Os desafios da ciência são muitos e variados, embora agora haja um interesse mais recente e mediático ligado à pandemia em curso. Mas as grandes questões da ciência permanecem actuais. Como as ligadas à longevidade humana, devido a problemas como o cancro e Alzheimer, por exemplo, que afectam muito a qualidade humana e o nosso desejo de imortalidade, digamos assim.
Mas há um grande foco de incidência na questão da pandemia de coronavírus.
Existe, mas não podemos esquecer umas áreas em função de outras e não podemos estar sempre a iniciar linhas de investigação e interrompê-las, sempre que um assunto entra mais na ordem do dia do que outro. Esta pandemia é um problema com 11 meses o que, à escala temporal em que se faz investigação científica, é uma escala relativamente reduzida. É um problema muito recente.
A ciência tem permitido aumentar de forma extraordinária a esperança de vida mas também foi a ciência que ajudou a criar armas de destruição em massa e que, em último grau, podem acabar com a humanidade. Há uma ciência boa e uma ciência má?
Não. Há conhecimento que pode ser utilizado de uma boa maneira e há conhecimento que pode ser utilizado de uma maneira má. A mão que constrói uma parede para fazer uma casa é a mesma mão que pode arremessar pedras contra outra pessoa. O conhecimento científico é colocado à disposição da humanidade e a humanidade pode usá-lo para o bem e para o mal. A ciência gera conhecimento e o conhecimento, depois de gerado, é irreversível.
Como cientista não teme que o seu conhecimento, o resultado das suas investigações, seja usado para fins menos próprios?
Sim, é um risco. Já aconteceu em várias ocasiões na História da ciência, que está cheia de aplicações desse género. Incluindo a própria dinamite, pensada para ser usada em pedreiras e não exactamente para situações de guerra e conflito. Compete à humanidade saber como usa as ferramentas em seu favor. É uma responsabilidade de todos. Agora, nunca se pode dizer, em circunstância alguma, que a melhor alternativa é a ignorância. A ignorância nunca é alternativa.
Os prós e contras de uma vacina desenvolvida em tempo recorde
Têm havido notícias optimistas sobre o desenvolvimento de vacinas contra o coronavírus e a Agência Europeia de Medicamentos disse que as primeiras doses para as populações de risco devem chegar na Primavera de 2021. É um cenário demasiado optimista?
Depende de como formulamos a questão. Dizer que há uma vacina, no sentido de que terminou o seu desenvolvimento e existe um produto, é um objectivo alcançável até à Primavera de 2021. Mas uma coisa é ter o produto disponível, outra coisa é conseguir produzi-la em quantidades suficientes para uma fracção significativa da população. E outra coisa ainda é pô-la no local de administração. Isso vai ser uma tarefa que, por si só, se junta à tarefa de desenvolver a vacina.
O desenvolvimento desta vacina é feito em tempo recorde, tendo em conta o historial deste tipo de investigações. Vamos estar perante um produto credível e eficaz?
Em princípio sim, se toda a gente fizer o que tem a fazer, nomeadamente se as agências regulatórias aplicarem os critérios que sempre usam e forem tão exigentes como sempre são. Será um produto minimamente eficaz e minimamente seguro se todos fizermos o que é suposto fazermos. Agora, a questão é se a vacina seria esta, se a formulação seria esta, se não houvesse esta urgência e pressão toda.
Poderia ser um produto melhor se tivesse mais tempo de investigação?
Estou em crer que sim, que poderia ser um produto melhor, mais optimizado. Aliás, já se fala que a Pfizer, por exemplo, está a pensar uma nova forma de conservação da vacina para obviar às evidentes limitações que iria ter uma rede de frio de muito baixa temperatura para distribuir a sua vacina. Provavelmente, esta limitação faria parte do desenvolvimento da vacina e encontrar-se-iam formas de a tentar obviar. Demoraria mais tempo mas eventualmente chegava-se a uma vacina mais fácil de manusear do ponto de vista prático. A pressão para lançar já uma vacina leva a que eventualmente se esteja a libertar para o mercado um produto ainda não completamente optimizado.
Isso pode ter consequências também em termos de saúde pública e de evolução da pandemia?
Se toda a gente fizer o que deve, em princípio não aparecerá no mercado nenhum produto que não seja seguro ou minimamente eficaz. A questão é que talvez com um pouco mais de tempo de desenvolvimento se conseguisse chegar a uma vacina melhor, ou ainda mais eficaz, ou ainda mais segura ou mais barata ou mais fácil de manusear. Isto é como aquela história da tartaruga por vezes vencer a lebre.
A comunidade científica tem veiculado contradições, mudanças de discurso e de opiniões perante esta situação que apanhou o mundo de surpresa. Também foi mudando de opinião ao longo deste processo, tendo em conta a informação que vai estando disponível e o que vai sendo descoberto?
Fui mudando de opinião ou mudando de percepção em algumas questões, não só porque mudou o contexto mas porque, entretanto, apareceram também alguns resultados. No início estas vacinas de base RNA eram para mim vistas de forma mais céptica do que actualmente. Porque nunca foram desenvolvidas vacinas de RNA, que são as vacinas da Pfizer, da Moderna... Não há nenhumas vacinas que estejam a ser usadas actualmente envolvendo esta forma de acção. No início estava mais céptico do que agora, mas estamos a trabalhar em cima, sobretudo, de comunicados e resultados provisórios, ainda não há resultados definitivos.
Comunicação sobre as medidas restritivas não tem sido clara
Num tempo dominado pelas chamadas ‘fake news’ saber passar a mensagem é um desafio premente para a comunidade científica, até para evitar falsos alarmes ou optimismos desmedidos?
Sim. O combate pela verdade científica em oposição às ‘fake news’ é como o combate do jornalismo contra os boatos. Qual é o grande problema? É que a informação certificada jornalisticamente, segundo os critérios da ética e das boas práticas jornalísticas, não consegue acompanhar o ritmo e a simplicidade com que se gera o boato. Gerar um boato é uma coisa simples e rápida e certificar uma determinada informação pode ser bastante complexo e demora tempo. É uma luta desleal, porque de um lado está a imaginação e a facilidade e do outro está um trabalho que pode ser complexo. E com a ciência é a mesma coisa. Elaborar uma verdade científica exige bastante trabalho e procedimentos padronizados, para fazer uma ‘fake news’ basta um pouco de imaginação e uma meia verdade, como dizia António Aleixo.
Acha que os políticos nacionais têm estado bem na comunicação em relação a esta questão da pandemia?
Não, sobretudo porque tem falhado a clarificação da relação entre as medidas que são tomadas e o efeito que visam combater na origem. Excepto no início, quando a ordem foi “vamos todos para casa”. A mensagem foi clara, pois sabíamos o que estava a acontecer em Itália ou em Espanha, por exemplo. A partir daí, quando se teve de montar uma estratégia mais complexa para combater a pandemia, quando as pessoas voltaram à rua, ao trabalho e às aulas, deixou de haver uma comunicação clara sobre esta relação.
Tem sido uma política de navegação à vista?
Sim. Por exemplo, quais são os dados que sustentam que haja uma determinada medida para a restauração? Quais são os dados que sustentam determinadas medidas para o comércio? Porque é que as medidas não são iguais nas grandes superfícies e no pequeno comércio? Porque é que nos eventos culturais e desportivos por vezes se decide de uma maneira ou de outra? Falta perceber qual é a lógica com que se tomam estas medidas nos diferentes sectores. Sabemos que são tomadas as medidas A, B ou C, mas não sabemos a que se destinam em concreto. Não sabemos tão pouco como vamos avaliar essas medidas, se estão a ser eficazes e se fazem sentido ou não.