Serranos, Campinos e Bairrões - Personagens que Povoam os Textos – Os Cardadores Mindericos
Para onde se dirigiam os cardadores, quasi sempre aos pares, como os frades?... Para onde calhasse. Quem os chamava?... Ninguém! Eles bem sabiam que era em Abril que os lavradores e fazendeiros despojavam os rebanhos dos preciosos velos;
Personagens que Povoam os Textos – Os Cardadores Mindericos1
Para onde se dirigiam os cardadores, quasi sempre aos pares, como os frades?... Para onde calhasse. Quem os chamava?... Ninguém!
Eles bem sabiam que era em Abril que os lavradores e fazendeiros despojavam os rebanhos dos preciosos velos; que era em Maio que se vendiam as lãs churras e que então era chegado o tempo de irem aparecendo pelos povoados em busca de serviço. E lá iam de terra em terra, de fato besuntado, como convinha ao ofício, e para que se não dissesse que ainda “se não tinham estreiado”.
Mais aqui ou mais além aparecia sempre quem lhes reclamasse os serviços. E de uma esquina, de um quintal, ou de um postigo emergia cabeça curiosa que interrogava:
-Talvez vocês, tiozinhos, queiram cardar uma manchica de lã que ali tenho…
-É branca ou preta?
-Duma e de outra.
E, entre ambos:
-Pia tu cóa covana que ela é que tem de jordar o neto para o da fusca…2
Via-se a lã, ajustava-se o preço da cardagem de cada arrátel, se com uma se com duas imprimaduras, e estava fechado o contrato
-Ó chará! Arruma p'rai os beringeis, que amanhã, logo que apareça o cresta, atiremo-nos às do manco e é dar-lhe pr'á banda das mãos.
Efectivamente, no dia seguinte, lá estavam os dois cardadores sentados, cada um em sua tripeça, a que a manta dobrada servia de almofada; e de perna direita encolhida e com a esquerda um pouco avançada, era sobre esta e sobre o pulso esquerdo que descansavam uma das cardas; passavam-lhe sobre a dentadura recurvada e luzente algumas bêtas de lã, até formar uma certa camada.
Assentavam depois a outra carda com toda a força do braço direito, puxandoa custosamente, pois é a escarduça a operação mais difícil deste trabalho, que o imprimar é coisa fácil.
1 Escrito em 1938 por Francisco Serra Frazão em Santarém.
2 NA: Piar, falar; covana, dona da casa; jordar, pagar; neto, dinheiro; o da fusca, a refeição da noite; chará, cardador; beringeis, os alforges; o cresta, o sol; as do manco, as cardas; mirantar, ver, olhar; modelo, cão; o das Caldas, o alguidar; vista baixa, carne de porco; chaveca, cabeça.