“A minha palavra é a primeira palavra mas não é a última”
Chama-se Carlos Manuel Lopes Alexandre, é natural de Mação e faz 57 anos no dia 24 de Março. É juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal e tem a seu cargo casos muito mediáticos. Sobre ele já se escreveu tanto que a certos momentos da entrevista, após responder, sublinha que o que disse está na internet. “Basta ir ao google”. A conversa com O MIRANTE durou duas horas. Os assuntos eram do seu agrado. Mação, incêndios em Mação, a poluição do Tejo no concelho de Mação...ainda a primeira pergunta não tinha sido feita e já ele estava a falar.
Fez o ensino básico em Mação e o secundário em Abrantes. Como foi o exame para entrar para a Universidade?
Fiz o chamado Propedêutico no ano lectivo 78/79. As aulas eram transmitidas pela televisão à noite. Durante esse ano trabalhei como servente de pedreiro. Para um vizinho GNR que andava a fazer uma vivenda aqui perto e nas obras de restauro de uma capela. Já tinha experiência de ajudar o meu pai a construir a casa dele. Fiz o exame nacional para entrar para a Universidade, em Santarém. Tive 14,4 valores. Entrei para Direito.
O seu pai tinha dinheiro para o ter em Lisboa?
O meu irmão é treze anos mais velho que eu e a minha irmã dez. Se algum deles ainda estivesse a estudar era difícil. O meu pai, que era carteiro, tinha ficado a ganhar mais depois do 25 de Abril mas infelizmente teve uns problemas de saúde e os rendimentos diminuíram.
Concorreu a alguma bolsa de estudo?
Eu era considerado rico porque éramos só três pessoas lá em casa e o rendimento “per capita” não dava para ter bolsa de estudo, nem isenção de propinas, nem alojamento. Durante esse tempo ver colegas com direito a ajudas mas com carro à porta da faculdade, quarto na residência de estudantes e a vestirem roupas caras deu-me alguma capacidade para entender certas coisas.
Aqui da varanda de sua casa podemos ver que os fogos deste Verão andaram muito perto.
Em 2003 chegaram até a estar mais perto. Nessa altura eu quando vinha cá ficava ali na casa que era dos meus pais onde agora vive a minha irmã. Não estive cá mas vi pela televisão e contaram-me.
Nos incêndios do ano passado esteve cá?
No primeiro incêndio estava a trabalhar. Estive no incêndio de Agosto. Não sei se podemos agradecer ao senhor CONAC (Comandante Operacional Nacional da Autoridade Nacional de Protecção Civil) o facto de não ter ardido o concelho todo. Salvou-se 25 por cento do concelho e nesses dez mil hectares que não arderam estão incluídas as ruas, estradas, casas...temos que lhe agradecer porque na verdade podia ter ardido o concelho todo.
Noto alguma ironia nas suas palavras. O que viu e como se sentiu?
Já manifestei a minha disponibilidade a quem de direito para ir depor sobre este assunto. Da segunda vez pude assistir aqui mesmo a este espectáculo dantesco. Assisti aqui com alguma estupefacção à chegada de meios, meios, meios... contei quarenta auto-tanques. Estavam ali encostados à parede neste largo aqui perto. E partidas para o terreno nada.
São conhecidos muitos pormenores de falhas na coordenação de meios.
O fogo era muito à volta da vila toda. Esteve a dez metros das bombas de combustível. Fui dar uma volta à vila com a minha mulher e o meu filho mais novo para ver. A situação era preocupante. Não é gratificante ver um helicóptero a aterrar, mandar evacuar uma piscina aqui perto, a uns 150 metros. Tirar água da piscina com aquele balde, em desespero de causa, e ir largá-la um pouco mais em baixo às bombas de gasolina. Isto é o pânico. E depois os helicópteros não iam logo. Andavam aqui à volta.
Houve alguma discussão por causa da ajuda de uma unidade militar espanhola...
Também vi o destacamento militar de emergência espanhol e lembro-me de toda a gente em Lisboa e noutros locais a perorar sobre a bandeira hasteada nesse destacamento. Mas a Unidade Militar Espanhola ajudou a salvar muitas aldeias em coordenação com as autoridades portuguesas. Se me chamarem como testemunha digo isto e mais coisas a que assisti.
Está arrependido de ter feito aqui uma casa nova?
Comecei esta casa há quatro anos. Dei a minha parte da outra casa aqui ao lado, que era dos meus pais e que ajudei a construir, desde os caboucos até ao telhado, de garantia. Estou a habitá-la desde Agosto. A minha ideia e da minha esposa é virmos para aqui definitivamente. O meu filho mais velho formou-se em Engenharia Química em 2015 e já trabalha. O mais novo tem 19 anos e anda no 2º ano de Direito. Esta é a minha terra e esta foi a nossa opção.
Com todos os problemas que o interior tem acredita que fizeram uma boa opção?
Esta terra é conhecida pelos três ás. Ar, água e azeite...
Percebo a ideia mas há mais que isso a ter em consideração.
Não tenho a pretensão de acreditar que todos os problemas do interior vão ser resolvidos mas pelo menos que sejam atenuadas algumas assimetrias. A minha irmã e o meu cunhado, que viveram noutros locais, também vieram para Mação. Não estão à procura de centros comerciais nem de cinemas, etc... mas tal como nós têm a expectativa que as coisas funcionem.
É necessário serem optimistas...
Nem todos poderão vir para Mação na expectativa de irem para o Lar de Idosos porque ele não comporta todos. Temos o hospital de Abrantes que está mais perto. A antiga estrada daqui a Abrantes tem 96 curvas. Ainda lá está. Arranjaram uma alternativa mas não facilitaram. Temos que pagar portagem se queremos evitar aquelas curvas todas.
Investiu na sua terra à qual está e estará ligado.
Ao fazer aqui a casa tive que pedir um empréstimo, primeiro de cem mil euros e depois outros cem mil euros para acabar. É um empréstimo que ando a pagar. Hei-de morrer antes de conseguir pagar o empréstimo porque o prazo vai até aos 80 anos mas não sei se durarei até lá. Tenho a expectativa que isto melhore.
Aqui recuperou a casa dos seus pais. Fez o mesmo no Alandroal de onde é a sua esposa.
Isso é verdade e essa minha faceta é conhecida. Digo, na brincadeira, que se tenho casado com a filha de um construtor hoje era provavelmente empreiteiro. Noutra reencarnação devo ter sido pedreiro.
Para além dos incêndios tem aqui à porta um rio, o Tejo, extremamente poluído. Do Ar e da Água fica o azeite se não arderem também as oliveiras.
Quando numas férias da faculdade, em 82/83, trabalhei como carteiro, para fazer as férias de alguns carteiros, ia a Ortiga e já havia fenómenos no rio. Poluição, pragas de jacintos de água.
Uma empresa de celulose meteu uma acção contra um ambientalista, Arlindo Consolado Marques, por difamação, por ele ter ligada a empresa à poluição. O senhor vai ser testemunha abonatória dele. Foi ele que lhe pediu?
Não, não. Eu ofereci-me. Não é por protagonismo, ao contrário do que possa parecer. Em Outubro farei 33 anos de tribunais. Sei o que é um processo de difamação e como é que as coisas são e depois o que podem ser.
Ligar uma empresa à poluição...
Uma pessoa pode ter uma forma de expressão ao falar dessas coisas mas quem está do outro lado tem que ter a inteligência superior para perceber se aquilo é dito com intuito difamatório e ofensivo ou como um grito de alma. É nisto que reside o elemento subjectivo do crime de difamação. Ter o “animus” de difamar aquela pessoa ou aquela empresa em concreto. O homem vê a poluição, percorre o rio, vê e volta a ver. Interroga-se. Estarão eles a cumprir? Será daqui? Faz vídeos, fotografias, participa o caso às autoridades e as autoridades vão lá e levantam autos.
Se se ofereceu para ser testemunha abonatória é porque está convencido que não houve intenção de difamar a Celtejo.
O senhor Arlindo é um cavaleiro andante do rio. Quando a gente vê que as pessoas estão a desempenhar um papel de cidadania activa tem que pensar. O mais fácil para ele, que é guarda prisional em Torres Novas e amanhã pode estar noutro lado qualquer, era não fazer nada. Mas ele tem raízes aqui. Quando eu me interesso por assuntos que dizem respeito à minha comunidade, como os incêndios, a poluição do Tejo ou outros, estou a ter um papel de cidadania activa.
Fala de si, da sua família, do concelho de Mação com entusiasmo e muitos pormenores e datas. Está a preparar alguma autobiografia?
Não. Nunca pensei nisso mas vou com muita facilidade ao detalhe. Tomo notas diárias de muitas coisas que faço no dia-a-dia, tanto a nível profissional como pessoal. De contactos que tive, etc...não vou ao pormenor mas registo.
No cargo que ocupa tem muito poder. Lida com casos complexos de criminalidade económico-financeira, tráfico de droga, terrorismo...
Os dossiers foram lá parar pela sua natureza. Suscitavam a intervenção de determinados profissionais e de determinado tribunal. Não é uma escolha minha. E o meu poder é limitado. A minha palavra é a primeira palavra mas não é a última palavra. Não há nenhuma decisão, a não ser sobre coisas como a marcação de uma diligência, por exemplo, que não seja escrutinada pelos tribunais superiores, se houver recurso. A minha decisão é confirmada ou não.
Tudo está registado?
Eu mantenho uma base de dados no próprio tribunal com todas as decisões dos tribunais superiores, Relação, Constitucional... com todas as decisões que foram proferidas sobre as minhas decisões. E tem estado à disposição dos senhores inspectores. Para além de muitas serem públicas e estarem colocadas nos sites daquelas entidades.
O balanço é positivo?
Atrevo-me a dizer que sim. Tenho menos de dez por cento de reprovações e são centenas de decisões.
Nos interrogatórios, como consegue perceber quando as pessoas que interroga falam verdade? Como sabe quando deve parar ou insistir? Quando tem que fazer mais perguntas? Como aprendeu isso?
O caminho faz-se caminhando. Há a experiência dos que nos antecederam, a experiência que nos foi transmitida durante o estágio. Depois vamos aprendendo. Uma coisa é certa, não há ninguém que possa entrar na cabeça de outra pessoa. Esta relação que existe durante xis horas entre determinadas pessoas não depende só da expressão verbal de cada um ou até da sua própria mímica, das expressões faciais, dos gestos...tenho-me esforçado pela documentação dos actos ao nível de gravação e de vídeo-gravação porque isso permite surpreender as reacções das pessoas a qualquer pergunta. Mas como disse o caminho faz-se caminhando.
Continua viciado no trabalho?
Gosto muito do meu trabalho. Envolvi-me a duzentos por cento no meu trabalho. Não sei se terei feito a melhor opção mas agora já não vou a tempo de mudar.
É verdade que tem mau feitio?
Tenho (sorriso).
Já cortou relações com algum dos seus amigos de infância?
Não. Sou muito amigo dos meus amigos mas eles também são muito amigos.
Alguém escreveu que anda sempre com um terço no bolso. É verdade?
É verdade. (Leva a mão a um bolso das calças, sorri e diz que deve estar no casaco)
Foi o senhor que escolheu o nome da rua, João Paulo II?
Não. Tenho muita admiração por esse Papa mas não tive nada a ver com a atribuição do nome. Também tenho admiração por este Papa, ainda vivo. Esta zona chamava-se Portela do Vale.
É chamado a tomar decisões em casa. Como são acolhidas?
Normalmente sou chamado mais para ajudar nas tarefas de casa, dentro daquilo que sei fazer.
É condenado, digamos assim. E recorre?
Não, não. Tomara eu que não aumentem a pena.
Um cidadão de Mação
O juiz Carlos Alexandre, natural de Mação, é conhecido por ter a seu cargo alguns dos maiores e mais complexos processos de criminalidade económico-financeira, tráfico de droga, terrorismo, entre outros.
A sua escolha para Personalidade do Ano é uma forma de salientar a total seriedade e dedicação à justiça e por sempre ter dado provas de não procurar qualquer tipo de reconhecimento ou mediatismo, nem de fugir às suas responsabilidades.
Oriundo de uma família humilde (o pai era carteiro e a mãe tecelã numa fábrica), regressa à sua terra natal sempre que pode e continua a conviver com os seus amigos que, apesar das funções que ele exerce, o olham mais como um membro da comunidade que se interessa pelo que se lá passa do que como o famoso juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal a quem são entregues casos de enorme importância. Fez uma casa na terra, ao lado da casa dos pais, onde conta passar a sua reforma. Este ano, na madrugada de Domingo de Páscoa, voltará a cantar o Terço da Farinheira, pelas ruas da vila, na companhia dos seus conterrâneos.