“Quando nos acenam com 20 anos de prisão alteram a nossa vida mas não os nossos princípios”
Miguel Duarte, é natural de Azambuja e está acusado pela justiça italiana de auxílio à imigração ilegal por ajudar a salvar refugiados
Miguel Duarte é natural de Azambuja e um activista dos direitos humanos que anda na boca do mundo desde que foi acusado pelo Ministério Público italiano de apoio à imigração ilegal, por ajudar a resgatar refugiados no mar Mediterrâneo. Arrisca-se a uma pena de vinte anos de prisão.Vive em Lisboa, mas vai regressar este ano à sua terra.
Como é que um doutorando de Matemática vê a possibilidade de ficar com a vida em suspenso durante anos?
Para mim é claro que o trabalho que levámos a cabo é necessário. Depois de ver o navio onde trabalhava ser arrestado, não posso ter outro sentimento que não o de frustração. Estamos a falar de um navio que resgatou 14 mil pessoas. Se pensarmos que está há dois anos sem permissão para operar, basta fazer as contas. Quantas mais não poderíamos ter salvado? Igualmente frustrante é olhar para os meios e dinheiro investido numa investigação sem pés nem cabeça, que pretende apenas cumprir um objectivo político: o de acabar com o fluxo migratório para Itália.
Ter um partido da extrema-direita no actual Governo italiano influencia negativamente?
Esta questão começou com o Governo anterior, embora o actual tenha uma narrativa absolutamente anti-imigração e xenófoba. Mas é preciso perceber que o Governo anterior, embora fosse mais comedido nas palavras, não era de todo pró-imigração ou pró-trabalho humanitário.
Com esta acusação como é que pensa no seu futuro?
Quando recebemos uma carta a dizer que nos arriscamos a 20 anos de prisão começamos a fazer contas à vida. Não temo o futuro em relação à minha liberdade pessoal, mas em relação aos valores europeus e ao caminho que a política europeia está a seguir neste momento. Uma condenação vai abrir um precedente gravíssimo, o de criminalizar a ajuda humanitária. Se formos condenados e se isto se tornar recorrente é gravíssimo. Não quero viver numa sociedade onde uma pessoa se está a afogar e não há ninguém que lhe estenda a mão, por medo de represálias.
Participou em quatro missões em alto mar. O que traz dessas experiências?
Mudaram-me a vida. Tinha uma ideia do que ia encontrar, mas nada nos prepara para um embate deste tamanho. Ver o desespero das pessoas que acham que vão morrer e a esperança no olhar quando nos encontram. Nunca vivi nada que chegasse perto da felicidade de ter conseguido ser útil para tanta gente e, por outro lado, da tristeza profunda que ninguém apaga, de ter chegado tarde para tantas outras. Não existe nada que apague a memória de perdermos uma criança.
E o que incentivou um jovem com 24 anos a fazer-se ao mar para resgatar pessoas?
Estávamos em 2016, no pico da atenção mediática desta crise de refugiados, e tanto eu como milhares de pessoas na Europa vimos imagens horríveis na comunicação social, de pessoas a afogar-se e famílias inteiras a sofrer nos campos de refugiados na Grécia. A União Europeia embora tivesse capacidade para dar uma resposta ao problema não a estava a dar. Isso levou-me a querer fazer alguma coisa e foi assim que encontrei a Jugend Rettet que estava à procura de voluntários.
O facto de ter uma mãe professora que deu aulas em Moçambique teve alguma influência?
Talvez. Todos os meus irmãos estão, de alguma forma, ligados ao trabalho social e acho que isso tem a ver com a educação que recebemos. Fomos ensinados a ter uma certa responsabilidade para com a sociedade por sermos parte de uma componente privilegiada que pode fazer alguma coisa para ajudar a resolver problemas sociais.
Como é que a família reagiu?
Com nervosismo, mas sempre me apoiaram desde o início. Eles sabem que embora haja risco associado a este tipo de trabalho alguém tem que o fazer.
A campanha de crowdfunding para o ajudar angariou 55 mil euros. Esperava esta onda solidária?
O grau de ingenuidade que tínhamos quando lançámos a campanha era enorme. Começámos com cinco mil euros e ao fim de quatro dias atingimos esse montante. Sentimos uma surpresa enorme que nos aquece o coração.
E com que é que contribuíram as pessoas de Azambuja?
De Azambuja chegaram-me mensagens de pessoas que não via há anos, desde antigos colegas de escola, professores e vizinhos, que tiraram do seu tempo para me escrever mensagens de apoio. Não fui treinado para saber lidar com isto e para arranjar motivação, por isso esse apoio tem sido fundamental.
Espera que a Câmara de Azambuja lhe atribua uma condecoração?
Seria simpático da parte deles, mas não posso obrigá-los a fazê-lo. Até hoje não me contactaram, nem eu a eles. Não sei o que podem fazer por mim, mas se souberem de uma forma de me ajudar agradeço imenso.
Espera ser recebido como um herói pelos azambujenses?
Não sou um herói logo não espero ser recebido como tal. Em Azambuja espero ser recebido como o Miguel de sempre, que esteve fora e voltou.
Mas espera que tenham orgulho no Miguel que ajudou a salvar milhares de vidas no mar?
Espero que esta situação não desencoraje as pessoas de fazer voluntariado. Já recebi mensagens de pessoas que ao lerem a minha história se sentiram motivadas a fazer algo mais pela sociedade. E isso dá-me alento para continuar.
Um vegetariano que não gosta de touradas
Miguel Duarte nasceu em Azambuja a 6 de Setembro de 1992. Estudou durante três anos na mesma escola em que a sua mãe dava aulas. “Isso incomodou-me um bocado, pois sempre que me portava mal, a minha mãe ficava a saber”, confessa. Aos 15 anos foi estudar para Lisboa, porque “queria contactar com novas realidades”. É licenciado em Engenharia Física e Tecnológica pelo Instituto Superior Técnico (IST) e está a fazer o doutoramento em Matemática, no mesmo instituto.
Deixou a sua terra natal há cinco anos e foi viver para casa da avó, em Lisboa, para que as viagens de comboio não lhe roubassem tempo ao estudo. Agora quer regressar às origens. “Adoro Azambuja e quero voltar ainda este ano”, diz, confessando que é um homem do campo a fugir da azáfama da grande cidade. “Em Azambuja há uma calma e uma amabilidade nas pessoas que não existe nas grandes cidades. Basta pensar que o meu vizinho mais próximo, em Azambuja, estava a 500 metros de distância e tínhamos uma boa relação e aqui tenho vizinhos em cima e em baixo e não os conheço”, afirma.
É vegetariano e não gosta das tradições tauromáquicas, mas isso não influencia a forma como olha para as suas gentes. “Essas tradições não definem a Azambuja, são apenas uma das suas facetas. E há tantas outras de que gosto tanto, como a gastronomia e a hospitalidade das pessoas”. Miguel continua a fazer trabalho de voluntário na Humans Before Borders (HuBB), uma plataforma de sensibilização ao tratamento de migrantes e tem contactado, através dela, com vários dos que foram acolhidos em Portugal.