“Este país está-me apertadinho nas cavas”
Rui Sommer de Andrade diz que tem um péssimo dobrar de espinha
No 33º ano de publicação O MIRANTE decidiu republicar entrevistas, reportagens e outros textos dos seus primeiros anos. São matérias que já só podem ser encontradas em edições em papel e que agora vão passar a estar disponíveis também na Internet e só isso já justificaria a iniciativa. Mas são também textos que vale a pena ler por manterem uma surpreendente actualidade ou por revelarem informações e opiniões que ajudam a perceber melhor o percurso do jornal e da região.
Rui Sommer de Andrade, de 45 anos de idade, tem a mania de dizer aquilo que pensa e diz que tem “um péssimo dobrar de espinha”. Numa tranquila manhã de domingo, no início de Março de 1992, no Arripiado, com o Tejo em fundo, falou a O MIRANTE da família e da história; do rio e da burocracia; da política, dos políticos e das políticas. Declarações de um gestor, agricultor e diletante, que respira liberdade. “Não caibo em Portugal. Este país está-me apertadinho nas cavas. Este é o Portugal dos pequeninos”, declara.
Descemos pela estrada até quase ao rio. São 11 da manhã e está um dia de Primavera. Os cães ladram quando nos aproximamos do grande portão verde da quinta e vem alguém à janela. Depois aparece Rui Sommer de Andrade e fazemos o percurso inverso. Ia comprar tabaco. Fomos com ele, caminho de terra batida até ao alcatrão. Ruído de passos, a chilreada dos pássaros e as nossas vozes.
No pequeno largo da aldeia do Arripiado, concelho da Chamusca, em frente ao minimercado, cumprimenta as pessoas e entramos para beber um café. Lá dentro, mercearia, talho, peixaria. Cortam-se postas de peixe-espada ao balcão em cima de uma tábua.
Quando voltamos a sair para a luz do sol, ouvem-se galos a cantar e o som do sino da igreja. Lá longe o Tejo contorna o castelo de Almourol e espreguiça-se na curva de Tancos. Ali, à nossa frente, vem direito à margem onde nos encontramos, à procura do seu antigo leito. Estamos numa margem corrigida. Um antigo dique que as cheias de 1979 danificaram. Não encontrando resistência o rio começa a retomar o velho caminho e a invadir as terras.
Rui Sommer de Andrade fala-nos do dique do Arripiado e do rio. “O início desta obra de hidráulica é atribuído a D. João II. Pretendia-se na altura desassorear a parte baixa da Cardiga que ainda hoje se chama a “lagoa” e que era um pântano. Resolveram então desviar o braço principal do rio e pô-lo a correr por um braço secundário. Neste momento, com o dique partido, cada vez que há uma cheia, a tendência é o Tejo voltar ao leito antigo. Se o rio fechar ali junto à Barquinha, e já não falta muito para isso acontecer, volta a correr pelo leito antigo, que é pela Carregueira, e a Cardiga volta a ser a lagoa pantanosa que já foi”.
Ninguém quer saber do dique do Arripiado
Notam-se ainda os estragos das cheias de 1979. As madeiras da Caima soltaram-se, vieram rio abaixo e destruíram o antigo quebra-correntes. As águas entraram pelo campo. Onde era terra boa ficou areia.
“Esteve aí o Ramalho Eanes (Presidente da República). Até aterraram helicópteros na eira e tudo. Foi um ‘show’. Vieram também ministros e secretários de Estado mas não passaram ali de cima, do cruzamento. Era um dia de muito nevoeiro e estavam atrasados para o almoço na Golegã. Até hoje, o dique do Arripiado nunca mais foi reparado.
Da antiga propriedade da família, de cinco mil hectares. Rui Sommer de Andrade ficou com 247. Cento e vinte ficaram assoreados nas cheias de 1979. Agora estão todos a produzir. Foi um esforço muito grande e uma teimosia ainda maior. “Só para limpar aquela pontinha de laranjal, aquela bochechinha, que são cerca de dois hectares, tive máquinas ali a trabalhar durante dez meses para tirar areia. Só aquele bocadinho custou-me qualquer coisa como trinta e seis mil contos. Valia mais tê-lo deixado morrer”.
Do rio passamos à agricultura. Aos apoios à agricultura. “Fundos comunitários?! Estou virgem. E tenho orgulho nisso. Eu não trabalho para o subsídio. Como tenho formação económica, vejo se as coisas são rentáveis ou não. Se são rentáveis muito bem.
O subsídio vem por acréscimo. Se vier, muito obrigado. Se as coisas só são rentáveis em função do subsídio, não vale a pena ser coisíssima nenhuma. Nem industrial nem agricultor. Se o meu lucro for só o subsídio, mal de mim”.
Acende mais um cigarro antes de continuar. É alto, forte. Veste umas calças de bombazina verde, camisa de flanela, casaco de cabedal. Usa botas de couro. Botas de campo. Ajeita o boné e vamos descendo em direcção à quinta. “Digo-lhes uma coisa. Estou farto de políticos e de políticas. Para mim, do CDS ao PCP, é tudo incompetente. Evidentemente que há excepções honrosíssimas que confirmam a regra. Geralmente são os que se demitem ou são postos de lado. As pessoas que ocupam os cargos políticos só lidam com os livros e com as estatísticas. Não querem meter os pés na lama e ir ver os problemas com que as pessoas se debatem no dia-a-dia.”, declara.
Confessa que está farto de ouvir as mesmas conversas. De assistir à repetição dos mesmos erros. Isola-se ali no campo. Vai a Lisboa quando é obrigado e lê. Lê muito. Lê tudo o que tenha letras impressas. De Alexandre Herculano aos rótulos das embalagens. Ri-se outra vez. “Sou um papa-livros”. Ouve música também. Muita música. E toca. “Guitarra portuguesa, acordeão, concertina, órgão, ferrinhos...”. Rimos todos.
Fala da família, da infância, da vida. “Nasci em Lisboa, no Campo de Santana. Fui baptizado na freguesia dos Anjos. Tudo isto na Mouraria, ao pé do antigo Colégio dos Jesuítas, nas Portas de Santo Antão. A minha freguesia de nascimento é a Freguesia da Pena. Fui com seis meses para Elvas e aos 11 anos voltei para Lisboa, para o liceu, que fiz nos Jesuítas, com a sua carga psicológica e cultural própria. Tive uma breve passagem por Direito, e passei para Sociologia em Évora. A seguir, tropa».
Veio para o Ribatejo por questões profissionais mas, culturalmente sente-se mais alentejano. “Das zonas agrícolas onde a minha família estava inserida, identifico-me muito mais com as grandes extensões do Alentejo do que propriamente com a hortinha do Ribatejo”.
“Como devem imaginar sempre fui um torcionário”
Fica crispado quando fala do período a seguir ao 25 de Abril de 1974. Dos equívocos e injustiças. Passaram anos mas a memória ainda não desistiu de lutar. O coração ainda não conseguiu perdoar. A voz ensaia a ironia.
“...e depois fui saneado, como toda a gente. Fui saneado por ideias políticas, em 1975. Na altura era funcionário do banco Fonsecas & Burnay, mas como era casado com uma accionista que fazia parte da direcção de pessoal, reuniu-se uma assembleia-geral de trabalhadores onde compareceram três elementos que me sanearam por actividades legionárias. Como vocês devem calcular, sempre fui um torcionário. Andava sempre por aí a torcer as orelhinhas à malta toda. Realmente era da Legião. Tinha uma colecção de armas espectacular, adorava dar tiros e estar na Legião era a única maneira legal de, no antigamente, uma pessoa poder fazê-lo e de ter acesso a um determinado número de coisas a que hoje nem legalmente se tem acesso. A não ser que se compre na candonga.”
Conta também que, já depois do 25 de Abril, quando ainda cumpria o serviço militar, lhe roubaram de casa dos sogros a colecção de armas e o acusaram de ser uma indignidade nacional.
“Pus os meus galões de oficial em cima da mesa do comandante e perguntei-lhe o que é que eu estava ali a fazer, no exército português, dado que era considerado uma indignidade nacional? E a partir daí a minha atitude tem sido essa. O que é que faz uma indignidade nacional a trabalhar neste país a não ser para subsistir? ETenho um dobrar de espinha péssimo. Sou muito grande. Levo muito tempo a chegar lá abaixo. Não pago luvas, não bajulo, não sou subserviente, não faço parte de nenhum partido político e ainda por cima tenho a mania de dizer aquilo que penso”.
Reportagem publicada na edição de 15 de Março de 1992, Texto Alberto Bastos,
Fotos JAE. Texto editado