Serranos, Campinos e Bairrões - Personagens que Povoam os Textos – O Campino Esquecido
O homem do Ribatejo tem sido lamentavelmente esquecido por toda a gente, muito em especial por aqueles cuja riqueza amontoa dia a dia com cuidados de avaro.
Personagens que Povoam os Textos – O Campino Esquecido1
O homem do Ribatejo tem sido lamentavelmente esquecido por toda a gente, muito em especial por aqueles cuja riqueza amontoa dia a dia com cuidados de avaro.
Para muitos, para a maior parte, o homem ribatejano apenas existe no momento em que aparece com o seu calção azul, meia alvíssima, sapatos grossos, de colete vermelho e de pampilho ao alto, de jaqueta ao ombro, bifurcado no cavalo que faz parte da sua personalidade.
Estabulado o cavalo, ou retirada a sela para que ele fique gozando a plena liberdade da Lezíria, arrumado o pampilho, dobrado cuidadosamente o fato de campino, apenas em solenes ocasiões envergado, o ribatejano desaparece aos olhos da maior parte da gente que o desconhece, para mal se ficar notando entre os humildes servos da rica gleba que o Tejo fertiliza e arrasa.
Tudo neste homem se encontra mudado, exceto a sua personalidade máscula,
o seu tipo desempenado, em que se vislumbram certos traços atávicos do beduíno, encastoando uma alma que nada tem de berbere ou de boémio.
O característico barrete encarnado com rebordo negro, ou verde com o rebordo vermelho e a grande borla oscilando, que chega a anunciar o que vai na alma do campino, quase desapareceram, como desapareceu o capote e o lenço das avozinhas que eu já não conheci.
A jaqueta de corte especial, inconfundível, que nada tinha de andaluza nem de
beirã, a samarra conchegada, a ampla capa de cavalaria, que tanto abrigava o
cavaleiro como o cavalo, o calção tradicional, quase desapareceram também,
guardando-se apenas, como recordação ornamental e nada mais, a “farda” da
casa que serve.
E as suissas características do maioral desapareceram também, levadas por
esta enorme cheia de modernismo que invadiu todas as casas, todas as caras e todos os corações, levando muito do que era interessante e respeitável, para deixar muita coisa inútil e mesquinha, tornando os rostos incaracterísticos e as almas indiferentes.
O rosto do campino sofreu também o golpe da aragem que tudo arrazou e
contaminou, levando o cachimbo que fazia parte da sua personalidade, deixandolhe em troca a irritante ponta de cigarro entalada ao canto da boca; e olhando para certas gravuras antigas em que o campino aparecia em toda a majestade do seu importante papel de domador de toiros, ou desbravador da terra, ele sorri melancolicamente e murmura resignado: “-Atão... temos qu'ir ca épca...”
1 Comunicação apresentada ao II Congresso Ribatejano por Francisco Serra Frazão em 1947.