O MIRANTE dos Leitores | 04-05-2025 12:00

Santarém, a minha cidade. Cena de pancadaria na sala de aula

Ontem entrei no Google Earth: Santarém, Escola EB1/JI Pereiro.

Ontem entrei no Google Earth: Santarém, Escola EB1/JI Pereiro. Encontrei o espaço, mas não mais aquelas duas salas separadas por uma escadaria onde no meu tempo lecionavam o prof. Agnelo de um lado, e a prof. Maria Luiza (sua mulher) do outro. Um casal de beirões dedicados ao ensino de alma e coração, e sem amarras ao Estado Novo. As salas, estereotipadas ao estilo de então, carteiras limpas e conservadas, ao fundo a secretária do prof. e um piso parcialmente elevado destacando o espaço reservado à digna função de ensinar, mas também como palco.
A parede posterior decorada pela ardósia encimada pelo crucifixo, e ladeada pelas fotografias de Carmona e Salazar, a trilogia da época, Deus, Pátria e Família, e a Mocidade Portuguesa. Mas o prof. Agnelo além de beirão era um progressista para a época, ele trocava as voltas ao “Estado Novo”. Aos sábados, trazia de casa uma das suas volumosas enciclopédias, ora sobre o continente africano ora sobre astrologia, lá se ia o tempo da Mocidade Portuguesa.
Sem dúvida, e sem orgulho, fui o mais cábula dos alunos, apesar de bem-comportado. Dessa sala que tentava exibir um modelo de austeridade e progresso, vigiada por “contínuos” fiéis defensores dum estado repressivo e membros da Legião Portuguesa, ou quem sabe agentes da Pide, os jovens ainda sem maldade esperavam os ensinamentos de um prof. dedicado e atento às diabruras da juventude.
Mas, desse tempo, ainda conservo como se tivesse sido ontem, a cena mais bárbara passada nessa sala da aula, numa clara prepotência e péssimo exemplo. E, por incrível que pareça, nunca soube qual o motivo. Aí por volta de 1948/49, entra na sala um senhor franzino, de fato e gravata que nos foi dito ser o senhor inspector, e quase de imediato um aluno é chamado ao quadro, e logo que chega sem mais nem mais começa uma bárbara cena de pancadaria. Todos atónitos perante aquele espectáculo de selvajaria com o aluno a ser repetidamente esmurrado, com excepção do prof. Agnelo que mostrava claramente uma incontida revolta com a cena que se prolongou por uns poucos minutos.
Tal como hoje, também quando tinha 9 ou 10 anos não sabia o que era pancadaria e brutalidade, aquela foi a lição ao vivo e em directo do que era a brutalidade de um sistema, mas, mais do que isso, foi o despertar para uma realidade até aí desconhecida. De há muitos anos que penso que mais do que um castigo desumano a uma criança, ele foi um aviso a alguém, certamente que não aos miúdos. Pelo menos por isso, o desaparecimento da escola não me causou qualquer nostalgia. Hoje, Santarém será uma melhor cidade.
Rui Figueiredo Jacinto

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