Urgências de Santarém quase vazias na noite de Natal mas com muitas histórias
O MIRANTE acompanhou a noite de Natal de um serviço cheio de velhinhos.
Não há ambulâncias à porta das urgências. O espaço exterior da unidade do Hospital de Santarém parece ter sido varrido pelo frio. Não há nem sequer um qualquer fumador a distrair a ansiedade com o cigarro. São 23h00 da noite de Natal e a entrada do serviço de urgências está calma. Duas dezenas de pessoas na sala de espera. No corredor de acesso à triagem, despido de enfeites ou referências natalícias, e aos gabinetes médicos e sala de emergência apenas está um casal a pedir informações à assistente social no guichê junto à porta automática para onde só entram doentes e bombeiros. Nem parece um serviço de urgência, pelo menos como estamos habituados a ver em dias normais.
Para quem trabalha no serviço de urgência há anos, décadas, como o médico Sousa Roque, 63 anos, chefe de equipa em mais uma das muitas noites de Natal na urgência, já há pouca coisa que impressione e a falta do momento familiar de 24 de Dezembro caiu na rotina. A enfermeira chefe, Ana Isabel Fernandes, também encara esta noite como qualquer uma das que tem feito ao longo de vinte anos, sempre nas urgências (ver caixa). A noite de Natal não foge à regra dos restantes dias em que a maior afluência às urgências é de idosos. Nesta noite numa sala estão cerca de três dezenas de macas com doentes com mais de 75 anos.
Acidentes que marcam os profissionais
Mas há sempre momentos que marcam a vida de profissionais de saúde, mesmo muito habituados a lidar com dramas e morte. Sousa Roque, com 40 anos de serviço, que já podia não fazer urgências mas que quer continuar a trabalhar no serviço mais agitado do hospital, recorda-se da noite de Natal, há uns anos, já não consegue precisar quantos, em que entrou uma família nas urgências vítima de um acidente. Um casal e a filha de dois anos, da zona de Rio Maior, deslocavam-se da casa dos pais de um para a dos pais de outro, para partilharem o Natal com todos. A criança e a mãe morreram logo. O pai da menina sobreviveu.
A tentativa de suborno
Na triagem, que tem de ser rápida, não há tempo para se conhecerem histórias. Joana Salvado, enfermeira há uma dezena de anos a distribuir doentes na triagem, tem poucas histórias mas um sorriso de orelha a orelha. O que lhe acontece mais são as histórias inventadas para que o caso assuma uma dimensão mais grave e a pessoa que a conte tente ser atendida mais rápido. E já houve quem a tentasse subornar com dinheiro para que passasse à frente dos outros doentes.
A dormência, o álcool, a solidão…
Ainda não é meia-noite. No atendimento ou para serem vistos pelo médico estão 16 doentes urgentes e nove muito urgentes, com um tempo de espera que não chega aos vinte minutos. Às duas da manhã a afluência era maior, mas longe do que é habitual nas outras noites, com sete muito urgentes, 22 urgentes e três menos urgentes. Na urgência pediátrica havia três crianças menos urgentes. Na generalidade os casos que levavam crianças e adultos aos serviços de urgências estavam relacionados com gripes, falta de ar, vómitos ou um que tinha uma dormência no braço há uma semana, que na véspera de Natal acordou pior e que foi às urgências por volta da uma da manhã.
Na sala entre a triagem e os gabinetes médicos há quatro pessoas à espera de serem vistas. Uma delas está a dormir há mais de uma hora. Foi o álcool a mais que o levou às urgências, mas isso terá sido a forma de passar a noite num sítio com gente, porque o homem com roupa de trabalho tinha confessado viver sozinho e não ter família. Nesta noite há apenas um a passar a noite na urgência, mas em outros anos, diz Joana Salvado, há pessoas que pedem para ficar numa maca só para não estarem sozinhas em casa. Até às três da manhã o único caso grave foi o de um idoso de 90 anos que chegou já sem vida, por volta da 01h15, na sequência de uma paragem cardio-respiratória.
Pediatria com mais Natal
Na pediatria os médicos e enfermeiros usam barretes de Pai Natal ou bandoletes com enfeites natalícios. Teresa Barrocha está de serviço a chefiar esta urgência separada dos adultos. As crianças que têm aparecido, uma delas filho de uma enfermeira da casa, apresentam problemas relacionados com constipações e gripes. Aqui tenta-se despachar todas as crianças e evitar que fiquem muito tempo ou internadas, para que possam passar o Natal com os pais e familiares. No corredor há uma árvore de Natal e um presépio feito pelos profissionais.
O casal de enfermeiros
Ana Isabel Fernandes e Nuno Reis são enfermeiros no Hospital de Santarém. Conheceram-se nas urgências há 14 anos e casaram há oito. Ela continua nas urgências e ele está no bloco de partos. Na noite de Natal tentaram conjugar as escalas para estarem a trabalhar, embora separados por serviços. Assim a noite passa mais facilmente.
A culpa foi da carne de porco à alentejana
Aníbal Veiga foi um dos doentes que recorreu às urgências na noite de Natal. Transportado pelos Bombeiros de Rio Maior, cidade onde vive há quarenta anos, queixava-se de dores de estômago e vómitos. Transmitiu à enfermeira da triagem logo a sua opinião sobre o diagnóstico. “Foi da carne de porco à alentejana que comi no restaurante ao almoço. Mas ainda jantei senhora enfermeira. Agora tire-me é as dores se faz favor”.
O doente de 80 anos, bem-disposto apesar da situação, conhecido do segurança de serviço com quem trabalhou, já teve dois enfartes, cancro da próstata, que debelou com quimioterapia, e já foi operado aos intestinos. Mas continua a ser um lutador e já é conhecido do serviço onde vai algumas vezes quando está com problemas. Quando não está com dores ainda trabalha. Faz duas horas por dia nas bombas de combustível do Intermarché da cidade, onde antes tinha trabalhado onze anos. Antes disso trabalhou numa empresa que abastecia de bens alimentares as cantinas dos hospitais.