As peúgas da sorte e a viagem num volkswagem amarelo a caminho de um campeonato do mundo
Susana Feitor, atleta de marcha atlética, e Orlando Ferreira, administrador da Rodoviária do Tejo.
Susana Feitor foi campeã do mundo de marcha atlética aos 15 anos, tem uma carreira recheada de sucessos e medalhas e participou em cinco Jogos Olímpicos. Não está afastada da competição e tem aproveitado estar a recuperar de uma lesão para estudar Gestão das Organizações Desportivas. O engenheiro Orlando Ferreira, conhecido por ser um dos administradores da Rodoviária do Tejo, também participou numas olimpíadas, em 1972, como judoca, mas deixou a competição para se dedicar aos estudos. O MIRANTE juntou-os durante uma hora para uma animada conversa.
Susana Feitor é divertida a contar histórias e Orlando Ferreira tem uma técnica verbal apuradíssima. O MIRANTE
conseguiu registar um dueto improvisado com muitas notas desportivas. Logo na abertura falou-se de superstições de atletas e o administrador da Rodoviária do Tejo surpreendeu-se a si próprio.
“Nunca tinha pensado nisso mas lembro-me de uma ligação que tinha a umas calças do equipamento. Lá fora nas competições internacionais não tinha hipótese mas aqui tinha que usar sempre aquelas calças. Uns têm uma ligação ao cinto, outros ao casaco do quimono. Eu, não sei porquê, eram as calças. A minha mãe era modista e eu tinha umas calças já com muitos remendos postos por ela e eram aquelas que eu usava. Se calhar a minha superstição era levar a minha mãe junto de mim para o tapete onde disputava os combates”, reflecte.
Quem se interessa por histórias ligadas ao atletismo sabe que Susana Feitor usa um boné branco de pala em homenagem à maratonista suíça Gabriela Andersen-Schiess que nos Jogos Olímpicos de Los Angeles de 1984 entrou no estádio desidratada a cambalear mas que fez questão de terminar a prova. O que muito poucos sabem é que durante dez anos a marchadora de Rio Maior teve umas “meias da sorte” que usava sempre em competição.
“Usava-as sempre. Achava que se não as usasse tinha maus resultados. Era uma superstição que só acabou quando mudei de patrocinador uma vez que tinha que passar a usar meias com o seu logotipo. Usei as mesmas meias seguramente durante dez anos. Mas também tinha que as deitar fora porque já estavam muito gastas”, conta.
Orlando Ferreira diz que quando começou a competir no Judo não havia patrocinadores e que o mundo dos atletas acabava em Espanha onde participavam em algumas competições. Ir mais longe era uma aventura na verdadeira acepção da palavra. Para participarmos num campeonato do mundo fomos cinco num volkswagen amarelo até Nápoles, com o treinador ao volante”.
Estava dado o mote para falar de viagens e de histórias de viagens. E da maneira como se vê Portugal a partir do estrangeiro. Susana Feitor diz que esteve em muitas cidades sem ter visto nada ou quase nada. “Só dava para visitar alguma coisa quando a competição durava vários dias e as nossas provas eram logo nos primeiros dias. Mesmo assim acabávamos por ter que continuar a treinar e íamos apoiar os nossos colegas de outras modalidades”. A propósito da ligação que se tem com Portugal a partir dos estrangeiros que se encontra, lembra um episódio ocorrido em Seul, na Coreia do Sul.
“Foi em 1992, durante um Campeonato do Mundo de Atletismo. Um dia fui ao centro da cidade com outros atletas. A certa altura um comerciante puxou-me por uma mão e fez-me entrar na loja. Aquilo era pouco iluminado. Fez-me seguir por um corredor e descer umas escadas para uma cave. Eu estava com receio. Entrei numa sala com casacos, t-shirts e ele levou-me para junto do balcão e mostrou-me uma fotografia do Eusébio autografada. Estava contente por poder mostrar aquilo pois tinha visto o nome de Portugal no meu fato de treino”.
O administrador da Rodoviária do Tejo lembra-se de ter visto um miúdo em Petra, na Jordânia, com uma camisola do Cristiano Ronaldo mas refere que ninguém lhe fala de Portugal nas recentes viagens que tem feito. “A seguir ao 25 de Abril havia muita curiosidade. Agora é como se Portugal não existisse”, diz.
Os dois trocam impressões sobre os países nórdicos, nomeadamente a Noruega, que é muito usada pelos políticos como bom exemplo. A marchadora lembra que os principais serviços públicos fecham muito cedo o que permite às pessoas terem tempo para fazer o que gostam e para estar com a família mas refere que também encontrou pessoas a deitar lixo e a cuspir para o chão. “E senti que alguns olham para pessoas de outras raças de certa forma.... é por isso que eu às vezes consigo valorizar as coisas que temos cá”.
Orlando Ferreira diz que vai muitas vezes à Noruega para aprender mas concorda que em Portugal também temos bons exemplos e aproveita para elogiar a atitude dos jovens a quem dá aulas “quase pro-bono” no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. São exigentes, não aceitam a incompetência dos professores, têm entusiasmo apesar de saberem que têm um futuro sem futuro”. Lembra depois os mestres que o marcaram para a vida. O Professor Rómulo de Carvalho (António Gedeão) que conseguia explicar de forma simples as coisas mais complicadas e Monge da Silva, especialista em metodologia do treino que o ensinou a “teorizar a prática”.
No fim da conversa, depois de lembrar as muitas amizades que fez no desporto, Susana Feitor, a pedido de O MIRANTE contou a história da atleta mais “mazinha” que encontrou. “Foi numa prova na Eslováquia, em 2001. Uma atleta russa, cujo nome não interessa, ia à minha frente e de cada vez que passava nas mesas onde estavam as garrafas de água e as esponjas molhadas, arrastava tudo para o chão. O interessante é que ninguém a desclassificou. Foi uma prova que me marcou porque ia preparada para ganhar e acabei desclassificada de um modo obscuro e injusto que ainda hoje me custa a engolir.”.
O papagaio que já sabia cantar a primeira estrofe do hino nacional
Susana Feitor acha que o facto de ser tocado o hino nacional antes dos jogos da selecção nacional de futebol pode ser motivador para os jogadores mas lembra que no atletismo o hino só aparece no momento de glória, quando se ganha uma medalha de ouro. Diz que embora muitos atletas não cantem o hino do seu país quando sobem ao lugar mais alto do pódio, ela sempre o fez.
“Eu sempre cantei o hino. As vezes que ganhei e tocou o hino, eu cantei. Tenho até uma história interessante por causa disso. Fui campeã do mundo de juniores nos 5Km marcha apenas com 15 anos. O campeonato foi em Agosto de 1990, na Bulgária, e curiosamente, não sei explicar porquê, uns meses antes, pedi à minha mãe que me ensinasse o hino nacional”.
Susana Feitor diz que se aplicou tanto a aprender o hino como se aplicou na sua preparação para o campeonato. “Fartava-me de treinar e a minha mãe foi uma grande treinadora. Foi de tal maneira que a certa altura até o papagaio que tínhamos lá em casa também já cantava a primeira parte do hino”, recorda.
“Estou proibido de entrar na cozinha mas vingo-me quando estou sozinho”
Orlando Ferreira conta que está proibido de entrar na cozinha. “É verdade que não tenho qualquer apetência para assuntos de cozinha e não sei cozinhar mas nem sequer me deixam ajudar. Dizem que eu sujo muita coisa”, refere.
Acrescenta que tem que aproveitar quando está sozinho para comer uma coisa de que gosta muito mas que a esposa não lhe costuma fazer. “é quando como caras de bacalhau. Lá em casa nunca me fazem aquilo porque dizem que eu faço muito lixo”. A inaptidão para a culinária vem de longe. “Quando vivia sozinho comprei uma cataplana e o único prato que sabia fazer era amêijoas na cataplana”, revela.
O administrador da Rodoviária do Tejo gosta de toda a comida tradicional portuguesa mas quando vai viajar não resiste a provar os pratos típicos dos países onde está. Menos aquelas espetadas de insectos que servem na China. A sua colega de conversa, Susana Feitor, sabe um pouco mais de cozinha mas prefere os cozinhados da mãe. “Gosto de bacalhau no forno, feijoada...só não gosto de grelos porque amargam”, confessa.