Condomínio de luxo inacabado é casa de pessoas sem-abrigo
A urbanização Bella Guarda, em Vila Franca de Xira, ficou a meio e é hoje um esqueleto de tijolo e betão que acolhe gente a quem a vida não sorriu. O MIRANTE conta as histórias abreviadas de dois dos inquilinos.
O condomínio da Bella Guarda em Vila Franca de Xira começou a ser construído em 2006. Estavam previstos 75 apartamentos. O valor das casas iria variar entre os 117 mil e os 206 mil euros. Contudo a falência da empresa construtora deixou a obra a meio e os esqueletos de tijolo com vista para o Tejo são hoje uma residência para pessoas sem-abrigo.
Na traseira dos prédios caminha-se em cima de entulho. O chão de algumas divisões está cheio de dejectos humanos. São as casas-de-banho de quem ali vive. Um dos residentes é Amadu Baló. Está em Portugal há 13 anos e nos últimos três passa as noites na Bella Guarda. Natural de Gabú (Guiné-Bissau), chegou a Lisboa à procura de melhores condições de vida, mas a falta de trabalho, e consequentemente de dinheiro, atiraram o homem de 42 anos para a rua.
“A decadência trouxe-me até aqui. Trabalhei na zona industrial do Espadanal de Azambuja. Vivia perto do cemitério de Alverca, mas com o desemprego não foi possível continuar a pagar a renda, já não tinha fundo de desemprego nem rendimento mínimo. Depois ganhei um serviço na Câmara de Vila Franca de Xira onde trabalho como cantoneiro na recolha do lixo. Já procurei casa para mim, quero viver livre e à minha maneira, mas ainda não foi possível, dizem-me para esperar. Uma vez paguei a jóia de casa, mas no dia de receber a chave devolveram-me o dinheiro”, conta.
Chegou à Bella Guarda através de um amigo cabo-verdiano, que já vivia no condomínio. “Agora somos sete neste prédio, há outros que aqui vêm só para dormir. Com o meu rendimento compro comida e uma idosa, que gosta de mim, dá-me água pura que uso para beber e cozinhar. Somos só dois com fogão, os restantes fazem fogueiras para comer. Para tomar banho ao início usava os balneários da junta, agora vou a casa de uma madrinha às vezes. E quanto à casa-de-banho, não há, usamos divisões mais afastadas do prédio”, indica.
A família de Amadu e a autarquia sabem da situação em que se encontra. Diz que teve a possibilidade de ocupar um quarto em Vialonga, mas era uma grande distância para quem trabalha em Vila Franca. Viver na casa da madrinha também está fora de questão, pois “apenas tem um quarto e uma sala”. Na Bella Guarda, Amadu dorme numa divisão protegida por porta de madeira e cadeado. A iluminação faz-se com velas e por uma janela onde entra alguma claridade.
No Inverno o frio combate-se com cobertores entregues pela Cáritas. “É triste trabalhar e estar a viver aqui, às vezes vou-me abaixo e fico fulo só de olhar para estas paredes”, confessa Amadu.
“A vida aqui é dura”
Manuel Carvalho, 65 anos, é vizinho de Amadu. Vive ali há quase tanto tempo como o guineense. Durante grande parte da sua vida habitação nunca foi problema. Trabalhou na construção fora do país, percorreu vários países e trouxe sempre dinheiro, mas vários divórcios e a vida boémia que assumiu negaram uma almofada para o futuro.
A escassez de trabalho trouxe falta de dinheiro que o levou a encontrar abrigo entre paredes abandonadas. Manuel vive na rua há oito anos. Divide o quarto com outro sem-abrigo, tem uma cama que trouxe da casa da falecida irmã e aguarda há quatro anos decisão do tribunal para ter reforma por invalidez, tendo em conta os quatro parafusos nas costas e a prótese na bacia. Caso essa reforma não chegue, restam 8 meses para a reforma por idade. Espera comprar uma casa em condições para receber filhos e netos, pelo menos aqueles com quem ainda tem contacto.
“A vida aqui é dura, não é fácil”, assume. Natural de Benavente, Manuel Carvalho é oriundo de uma família de 14 irmãos. Apenas quatro estão vivos. Uma irmã ofereceu-lhe várias vezes abrigo na sua casa, mas ele rejeitou. Gosta de ser autónomo, de não prestar contas a ninguém. A independência de Manuel ganha extremos ao negar ajuda das instituições. “Estou inscrito há três anos na Cáritas para usar os chuveiros. Nunca lá fui, prefiro banhar-me aqui. Estou habituado à água fria”, diz. A água que usa para se lavar é retirada de um poço de elevador, que serve como reservatório à água da chuva. Para cozinhar vai buscar água à cidade, perto da igreja. Ao lado da cama há vários garrafões de água. Uma pequena botija de gás ajuda a cozinhar. Cuida da barba à janela, onde tem uma vista de luxo para a ponte Marechal Carmona, e na prateleira não faltam artigos de higiene. “Pobre mas asseado”, diz.